O ESTUPRO DO STJ, O CAMPONÊS E O SINO DE FLORENÇA
"Cada vez que morre é como se nunca houvesse existido para aqueles que
confiaram nela, para aqueles que esperavam dela o que todos temos o
direito de esperar da Justiça: justiça, simplesmente justiça. Não a que
se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica
judicial, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e alterassem os
pesos da balança, não a da espada que corta sempre mais de um lado que
do outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira cotidiana
dos homens, uma justiça para a qual o justo seria o sinônimo mais exato e
rigoroso do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável
para a felicidade do espírito como indispensável para a vida é o
alimento do corpo." (José Saramago).
E o mestre José Saramago ainda
nos conta uma história ocorrida nas redondezas de Florença, quando os
moradores de uma aldeia ouviram o ressoar ininterrupto do sino local e
todos para lá se dirigiram a fim de saberem quem havia morrido, contudo,
de repente, um velho camponês desce da torre da capela e ecoa tristonho
para todos os aldeões: hoje não morreu ninguém, estou tocando o sino
pela MORTE DA JUSTIÇA.
O motivo era que o marquês latifundiário,
ganancioso e corrupto do lugar, estava avançando suas cercas sobre os
lotes dos nativos, os quais, na esperança de serem protegidos procuraram
as autoridades judiciais, no entanto não tiveram respostas. Os marcos e
as cercas continuaram avançando.
Há dias que um nó na minha
garganta me angustia, me deixa agudamente deprimido, foi a decisão da 3ª
Turma do STJ, que considerou não ser crime a prática de conúbio sexual
com crianças e adolescentes que já sejam iniciadas nessa intimidades e
cheguei a pensar: “decisões judiciais que aviltam a cidadania, a
consciência, violenta todos os nossos valores devem ser cumpridas? A
minha resposta é não e não com toda a veemência que essa excrescência de
sentença merece e também me pus em reflexão: e se fosse a filha de um
ministro a vítima, a espada teria cortado do mesmo lado ou haveria uma
inversão de entendimentos? Se a estuprada fosse a sobrinha querida da
ministra relatora, a balança pesaria da mesma forma ou seus pesos seriam
alterados?
Ilustrada ministra e demais votantes da aberrante
decisão, aonde os senhores já viram crianças miseráveis, famintas, sem
lares, sem famílias, sem orientação, sem esclarecimentos, sem formação
religiosa, familiar, social, terem a compreensão e o entendimento para
validarem suas vontades em transações com adultos portadores de sérios
desvios de conduta? E se essas crianças, essas adolescentes não possuem
tais preparos morais e éticos, é porque algum corrupto dos mais
depurados palácios, tão bonitos e impressionantes como esse que Vossas
Excelências fazem parte lhes roubou a oportunidade para tanto, e ao
roubá-las, assaltou os seus direitos de ter discernimento para saber se é
lícito, se é legal, se é moral, se é ético (seu mundo gosta de falar em
ética) vender a sua pureza, o seu corpinho ainda em formação,
anatômica, fisiológica e moralmente. Mas Excelências (gostam de ser
tratados assim), como não é sua filha, a besta que comprar seus favores
sexuais nada deve à justiça, pois comprou as carnes já corrompidas,
experientes, criminosas, não mais ingênuas, conscientes e informadas
(foi a senhora quem disse no seu voto) de alguém que marcha na multidão
sem rosto, na procissão invisível dos injustiçados, dos periféricos, dos
silva do amado solo brasileiro e por isto mesmo não é crime algum. Que
coisa ministra, a menininha de rua pode vender suas partes pudendas que
não é crime, foi seu pai ou sua mãe que lhe ensinou isto? A Filosofia, a
Antropologia, a Teologia, tenho plena convicção, não foram responsáveis
por essa sua formação desumana.
Sua decisão tem que ser colocada no
banco dos réus da consciência moral e ética de todo o planeta, em todas
as esferas de poder e de discussão da dignidade humana.
Seus votos
me diz que os dignos ministros, tanto em São Paulo quanto em Brasília
viram os olhos aos excluídos e tem formação preconceituosa com os
desvalidos que suas canetas deviam proteger. Pergunto-lhes: a senhora e
os senhores não sentem pudor e nem se incomodam com o que fizeram? Se
responder não, confirmam as minhas fundadas insinuações.
A
relatora desse insulto abjeto ao povo de bem deste país, é a mesma que
manteve Pimenta Neves solto após condenação por crime de repercussão
mundial, julgou não existir crime quando um estelionatário induz um juiz
em erro e levanta valores à disposição da justiça e agora, de forma
arrogante, vaidosa, autoritária, entendendo que a sua função lhe
autoriza a tomar decisões insólitas, vergonhosas e criminalizadora da
infância e adolescência pobre da nossa nação.
Admira-me alguns
magistrados que libertam assaltantes, estupradores, assassinos,
latrocidas, traficantes de todos os matizes se acobertarem para fazê-lo
de alguns argumentos ou fundamentos como chamam, para colocar nas ruas
tais celerados, quando tinham à disposição centenas de outras razões,
além de todos os princípios jurídicos e sociais para os manterem no
cárcere, às vezes inconformado penso: a vida, a honra, o patrimônio não
são deles e nem dos que lhes são caros, de forma que devem raciocinar,
se é que possuem razão: nada temos com isto, vocês que se virem, solto e
pronto, se ele voltar a matar, problema de vocês.
Ora, se uma
adolescente de 12 anos pode vender seu corpo, então pode praticar
qualquer ato da vida civil, a exemplo de contrair empréstimo, comprar a
crédito, obter financiamentos, vender o que dispuser, tudo é válido, se
já não são mais inocentes, segundo os sábios ministros, cuja decisão,
esta sim, estuprou a todos nós e sabem o que eles acham disto? Ficam
zombando, rindo, debochando.
Concordo com a ANPR (Associação
Nacional dos Procuradores da República) que exclamou: “A decisão foi um
salvo conduto à exploração sexual”.
Sou solidário a todos os
lutadores pelo direito à cidadania que entendem que a proteção a quem
ainda não tem capacidade de tomar decisões importantes é um DIREITO
ABSOLUTO que não pode ser relativizado, como fez a decisão da ministra
paulista e seus preclaros colegas da 3ª Turma.
É de se perguntar:
uma adolescente, mesmo com experiência sexual possui experiência? É
óbvio que não, ela é um ente em formação, ela não pode avaliar as
conseqüências de se prostituir, ela necessita aprender, precisa de
defesa e ao contrário do entendimento da ministra e seus seletos pares
de vestes talares medievais, merecem sim, muito mais ainda, de todos os
cuidados, de toda a proteção, já que o fato de se prostituirem é mais um
estado de vitimização e não criminalização como fizeram.
Eu, um
velho promotor que escrevo duramente contra adultos tarados, pedófilos,
que trabalho 24 horas no combate a essas feridas que calam fundo na
consciência de toda a gente, só posso exclamar: COM DECISÕES DESSE JAEZ,
BREVEMENTE, URBI ET ORBI, OS SINOS RIBOMBARÃO EM TODO O TORRÃO VERDE
AMARELO, NUM CHORO COPIOSO PELA MORTE DA JUSTIÇA, CUJA INUMAÇÃO SERÁ
EFETIVADA COM SUAS TÚNICAS DO TEATRO MEDIEVAL.