terça-feira, 31 de março de 2015

O autoconhecimento humano e a centelha divina em nós

O autoconhecimento humano e a centelha divina em nós

Se Deus é Natureza e todas as coisas que existem são parte de uma Totalidade, então a centelha divina está presente em cada criatura viva e mesmo em cada objeto, cada ser animado ou inanimado, cada corpo celeste, cada força da natureza é expressão da potência divina. Cada ser particular pertence ao Todo e existe em separado, alienado desta Totalidade e ao mesmo tempo existe nela, no Uno, no Universo de múltiplas manifestações e de um eterno devir, de permanentes mudanças no seio de uma mesma substância. O ser humano, único animal racional, único ser criador, capaz de transformar a natureza, que se adapta ao meio adaptando o meio a ele e, portanto, a mais alienada de todas as criaturas, porque a mais consciente e a que mais anseia pela reintegração ao Todo, com todo o seu espírito, e a única capaz de integrar todos os seres do Universo por meio do trabalho, da linguagem e da razão. A conquista sobre o caos da vida natural traz a ordem humana para o mundo e opera o milagre da harmonia verdadeira, a única que não implica na aleatoriedade da destrutividade criativa e da criação destruidora da natureza não humanizada. A ordem estética governa a beleza e as formas que expressam tudo aquilo que a vida é e pode ser. E a ciência, o pensamento racional e crítico em geral, permite a unidade de todas as coisas do Universo em pensamento. A natureza é o objeto da atividade prática e da atividade intelectual do homem e é através da atividade vital consciente do homem que todos os objetos naturais ganham voz e identidade, ganham nome e assumem relações entre si de maneira clara. Mas isso tudo é o homem enquanto projeto. O homem real é criatura incompleta e sofredora. A chama divina tão poderosa nesses semideuses entre as feras e as bestas, ainda é pequena demais. Nesse sentido, os gênios e os heróis que de fato existiram são um prenúncio da humanidade vindoura. Eles são uma antecipação da existência humana em sua plenitude, do homem divino ao invés do homem besta, do homem livre ao invés do homem escravo. E os heróis míticos são a visão utópica daquilo que o homem pode ser. A nossa existência é trágica, é marcada pela limitação, porque elevar-se acima de si mesmo, alcançar a iluminação é tarefa ainda mais dolorosa do que viver uma vida de sofrimento e de carência, porque a felicidade rebaixada que a vida alienada oferece obscurece a verdade que fala ao homem que, às vezes, para viver de verdade é preciso arriscar a própria vida, que a liberdade sempre tem um preço e que o reino da liberdade e da felicidade que projeta sua luz sobre esse mundo de alienação, esse reino de sombras e de morte, não pode ser alcançado por decreto político voluntarista nem subjetivamente no plano individual e de forma quietista, que é uma tarefa individual e coletiva que depende da aprendizagem humana ao longo das gerações, da conquista do autoconhecimento por parte de cada indivíduo, da consciência social dos grupos sociais progressistas que despertem para sua missão histórica e da ampliação do horizonte de expectativas do conjunto da humanidade, ampliando assim as possibilidades de uma vida livre e feliz de fato. A emancipação humana depende da ação política consciente dos sujeitos sociais revolucionários, da unidade dos explorados e dos oprimidos num bloco político capaz de conscientizar a maioria da humanidade da necessidade histórica da reunificação do homem com o homem e do homem com a natureza numa sociedade comunista. Somente a luta pode fazer brotar o fogo que habita cada um de nós e libertar cada indivíduo das limitações cognitivas geradas pelas limitações sociais, em especial os limites impostos à imaginação, fonte de liberdade em relação à própria realidade material, mesmo que condicionada em certa medida por ela. A luta de classes e o conflito de gerações são, ao longo da história humana, os conflitos sociais mais determinantes nas transformações sociais, políticas e culturais. Se isso parece de alguma maneira excessivamente antropocêntrico, é importante perceber que mesmo a mais brilhante estrela em todo o seu esplendor não tem consciência disso. Nós somos feitos da mesma matéria que são feitas as estrelas, nós somos poeira cósmica e estamos unidos a tudo o que existe no Universo; e se por um lado nenhuma realização humana possa se comparar ao poder de uma supernova, de um buraco negro ou do Sol, a nossa consciência sobre tudo aquilo que existe torna a razão e a inteligência humanas as forças capazes de dar a todas as coisas um significado e forjar uma unidade consciente do Todo inconsciente. A memória dos sofrimentos e das injustiças do passado revelam ao homem o caminho da sua espécie na Terra. Essa memória projeta a esperança de uma vida renovada não para redimir o que não pode ser redimido, mas para redimir o presente e o futuro das tragédias que podem se concretizar e da permanência desta vida. O conhecimento histórico revela ao homem as suas realizações, de onde ele veio e tudo o que foi capaz de fazer e mostra a sua imagem refletida nesse espelho que é a história. Com isso, o homem compreende o poder que possui e o que precisa fazer para liberar todo esse poder no mundo. O homem é a consciência do mundo. Mas precisa ainda tomar consciência de si.
Rafael Rossi - novembro de 2014.